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Tecnologia brasileira para velocistas cegos disputa prêmio mundial de inovação

publicado: 06/04/2017 15h15, última modificação: 19/10/2018 09h51

 

Um projeto desenvolvido no Amazonas representa o Brasil na disputa pelo Sports Technology Awards, prêmio internacional de tecnologia para o esporte. O resultado será divulgado em 4 de maio, em Londres. A proposta consiste em dar autonomia a velocistas cegos, orientados por estímulos táteis a partir de sinais emitidos por sensores nas pistas de atletismo. Em entrevista ao portal do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), a coordenadora do Centro de Inovação em Controle, Automação e Robótica Industrial (Cicari), Ana Carolina Oliveira Lima, abordou desde a concepção da ideia, em 2012, até a expectativa de revolucionar uma modalidade paralímpica.
"Gostaríamos que algum dos nossos protótipos, seja o bracelete ou o macacão, já na forma de produto, pudesse transformar a concepção atual de corrida de pista em jogos paralimpícos", afirma a pesquisadora, em referência ao fato de a tecnologia dispensar a necessidade de um segundo atleta ao lado dos competidores deficientes visuais. "Eu acredito que esse tipo de tecnologia possa beneficiar as futuras gerações, para que não precisem mais de guias para executar essas competições. E o Brasil está sendo o primeiro país a levar esse conceito."

A indicação para o prêmio recaiu sobre o grupo de pesquisa Cicari, autor do projeto Meu Guia, com apoio de dois editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência do MCTIC. A Chamada nº 84, de 2013, aportou R$ 366,5 mil para a concepção da proposta. Já a Chamada nº 20, de 2016, direcionou R$ 174,4 mil, vigentes até 2018, para testes em busca das tecnologias mais viáveis. "Todo esse trabalho só saiu por causa do CNPq", ressalta a pesquisadora, que também coordena o Núcleo de Tecnologia Assistiva da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), programa liderado pelo Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI).
O Cicari é finalista na categoria "melhor inovação em vestimenta" e, segundo a coordenadora, tem pela frente cinco concorrentes associados a empresas e, portanto, mais próximos do mercado. O Sports Technology Awards destaca inovações de grandes marcas esportivas do mundo. A proposta amazonense já havia vencido, em 2015, o prêmio nacional Santander Universidades.

Ana Carolina está à frente de uma equipe multidisciplinar de alunos e professores de quatro instituições locais – o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam), a Ufam e as universidades Nilton Lins e do Estado do Amazonas (UEA) –, mas o grupo inclui profissionais vinculados ao Instituto Federal do Maranhão (Ifma), ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e às universidades do Minho, em Portugal, Estadual de Campinas (Unicamp) e federais de Campina Grande (UFCG) e de Pelotas (UFPel).

Graduada em Tecnologia em Processamento de Dados pelo Instituto de Tecnologia da Amazônia, em 2003, Ana Carolina possui mestrado e doutorado em Engenharia Elétrica pela UFCG, com experiência em engenharia de software e fabricação de produtos de tecnologia assistiva.

MCTIC: De onde surgiu a ideia de dar autonomia aos paratletas?
Ana Carolina: Eu diria que essa ideia surgiu no chuveiro, coisa de cientista, durante meu doutorado na Universidade Federal de Campina Grande, quando trabalhei com tecnologias para deficientes visuais, embora não diretamente ligadas ao esporte. Naquele momento, me perguntei o porquê de um atleta sem nenhuma limitação motora precisar correr acompanhado por alguém, puxado por uma corda. E aí apareceram outras questões. Como é que ele poderia disputar a prova sozinho? Qual seriam os impactos por correr ao lado do guia? Tudo isso foram fundamentos para iniciar a pesquisa em 2012.

MCTIC: A pesquisa concluiu que falhas na interação entre corredor e guia podem afetar 40% das corridas. Como a equipe chegou a esse número?
Ana Carolina: A primeira pergunta que a gente levantou ao grupo de pesquisa foi: como esse cego corre com alguém ao lado? Como fica a motricidade e a dinâmica em termos de mecânica, de movimento? Por isso, convidamos doutores em educação física e fisioterapia, justamente para nos ajudar a interpretar isso. Eles analisaram 245 vídeos de diversos Jogos Paralímpicos e observaram que, em 40% dos casos, há problemas nesse contato, seja quando o guia puxa o atleta, o atleta arrasta o guia ou alguém queima a largada ou se desequilibra. Submetemos esses dados a revistas de alto impacto e estamos esperando o resultado. São números de Paralimpíada. Tem muito atleta caindo ou que termina a prova sozinho. Alguns deles ficam parados a poucos metros da linha de chegada, depois de o guia o abandonar.

MCTIC: Como funcionam as tecnologias dos braceletes e do macacão?
Ana Carolina: Ainda não posso detalhar totalmente, porque as tecnologias estão em fase de propriedade intelectual, ainda em sigilo. Basicamente, trata-se de um sistema de estimulação tátil, instalado em dispositivos acoplados aos braceletes ou ao macacão. Desenvolvemos um código linguístico, também protegido por patente. Hoje, já existem sinais de comunicação entre o atleta e seu guia. Mas a nossa tecnologia deve ajudar o corredor a interpretar mais informações. Além de saber se precisa se deslocar à esquerda ou à direita ou seguir reto, ele poderá ter noção se está à frente dos demais, qual é a sua condição na pista, se uma curva se aproxima. Nossas pesquisas identificaram toda uma transcrição por meio da vibração. Esse é o nosso diferencial tecnológico. Um grupo de Portugal também teve a iniciativa de tentar fazer um cego correr sozinho, na mesma época, e publicou em uma revista. Eles colocaram GPS e fone de ouvido nos atletas. Mas eu discordo dessa solução. A bandeira que levanto como pesquisadora é que a comunicação tátil é mais efetiva do que a auditiva nesse caso. A pele faz uma interpretação muito mais rápida, porque há uma mobilidade. É preciso que ele interprete a mensagem e consiga se direcionar na pista. A ideia da nossa tecnologia é passar todas as informações de que o atleta precise, para lhe dar autonomia total.

MCTIC: A tecnologia pode eliminar a necessidade de o atleta ser acompanhado por um guia na pista durante treinamentos e competições?
Ana Carolina: A proposta sempre foi essa, desde o início. A minha concepção, como profissional que trabalha diretamente na engenharia, é que o atleta pode assumir toda a responsabilidade da competição ou do treinamento, diante de sua condição física. A pesquisa até gera um conflito nas tratativas com os guias, porque o atleta acaba tendo uma personificação desse treinador, uma relação muito íntima. Ele mistura sentimentos, cria uma dependência não só física durante a prova, mas também psicológica. Então, quando a gente fala desse tipo de tecnologia para os deficientes visuais, alguns concordam e outros batem de frente, por causa dessa relação. Mas o projeto não vai desempregar o guia. Esse profissional já acompanha o treinamento com o atleta. Ele vai ter uma redução da sua carga de trabalho.

MCTIC: Os equipamentos já passaram por testes em provas oficiais? Existe alguma avaliação do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB)?
Ana Carolina: Não. Fizemos apenas testes acadêmicos, acompanhados por equipes de filmagem. Inclusive, já submetemos publicações, duas delas aprovadas pela Sodebras, revista sobre soluções para o desenvolvimento do país. Nos vídeos, você pode ver a satisfação de atletas por correr sozinhos. Eles nunca tinham experimentado aquela sensação. Quanto a provas oficiais, tentamos fazer uma pré-seleção de atletas de alto rendimento, mas o Comitê Paralímpico não permitiu, dado que eles têm contratos com seguradoras. Temos que provar que a nossa tecnologia é confiável o suficiente, muito mais do que a chance de 40% de falha do método com a corda. Eu acho que esses caminhos de premiação e divulgação da tecnologia são oportunidades para a gente ampliar o diálogo com os comitês paralímpicos brasileiro e internacional.

MCTIC: Você coordena um núcleo de tecnologia assistiva de uma rede ligada ao MCTIC. É possível inovar para melhorar a vida das pessoas?
Ana Carolina: Eu acho que esse é o objetivo da engenharia em geral, não só da tecnologia assistiva. A engenharia está na humanidade para que a gente possa melhorar a qualidade de vida, seja da pessoa com deficiência ou não, seja de uma pessoa limitada temporariamente ou não. Então, esse ideal não se relaciona somente com a tecnologia assistiva. Se eu crio um novo produto que chega ao mercado, o objetivo é que beneficie a todos, com ou sem deficiência.

MCTIC: Os protótipos geram patentes e podem chegar ao mercado?
Ana Carolina: Já houve registro. Temos duas patentes depositadas, e outra está em processo de depósito. Elas têm relação tanto com a rede de comunicação como com os diferentes tipos de atuadores, do bracelete ao macacão. Eu gostaria, na verdade, que esses protótipos, na forma de produtos, pudessem mudar a concepção de como a modalidade de corrida de pista é realizada hoje em paralimpíada. Acredito que esse tipo de tecnologia pode beneficiar as futuras gerações, para que não precisem mais de guias para executar essas competições. E acho que o Brasil, nessa conjunção, está sendo o primeiro país a levar esse conceito de mudança na essência de uma prova de atletismo. Estamos indo a Londres para apresentar essa ideia ao mundo, vamos dizer assim, para as grandes empresas que desenvolvem produtos para o esporte. Estamos levantando essa pauta. Podemos mudar isso? Podemos fazer com que as futuras gerações tenham mais autonomia, mais liberdade? Nós não apenas mudaríamos regras paralímpicas, mas mudaríamos toda uma concepção, sem falar do impacto social que essa tecnologia pode vir a agregar.

MCTIC: Qual é o papel do CNPq na viabilização do projeto?
Ana Carolina: O trabalho começou quando eu tinha acabado de sair de um doutorado. Até então, era uma jovem pesquisadora que começou a fazer pesquisa graças ao CNPq. Eu não tinha onde pedir recurso para a minha ideia. Foi quando submeti a ideia ao primeiro edital, cujo resultado até me surpreendeu, porque eu nunca tinha tido um projeto aprovado. Aí, eu tive que aprender a gerenciar recursos, executar atividades e montar uma equipe multidisciplinar. Não posso contar só com engenheiros. Assim, tive que selecionar bolsistas e pesquisadores. Outros profissionais de referência nacional se interessaram pela pesquisa e contribuíram. Antes, eu não tinha essa rede de contatos nem essa expertise com a administração de um projeto. Deu certo e a proposta teve resultados significativos a ponto de premiação. Enfim, todo esse trabalho só saiu por causa do CNPq. Muita gente pensa que grandes projetos só podem ser executados por pesquisadores que já tenham know-how. O recém-doutor não pode sonhar? Isso é uma inverdade.

MCTIC: O trabalho evoluiu desde o prêmio Santander, em 2015?
Ana Carolina: O prêmio Santander reconheceu a competência e a envergadura do projeto, na verdade. Nós já tínhamos alguns protótipos para apresentar na época da premiação. O trabalho evoluiu, mas as particularidades a acrescentar estão em processo de propriedade intelectual. De 2015 para cá, evoluímos bastante na concepção da tecnologia. Algumas propostas originais não tiveram bons resultados em teste. Então, optamos por outros tipos de tecnologia. E dentro dessa opção, houve outras inovações.

MCTIC: Você esperava concorrer ao Sports Technology Awards?
Ana Carolina: Olha, confesso que nós fizemos a inscrição ao prêmio de uma forma bem ingênua, porque, quando vimos as edições anteriores, percebemos que todos os vencedores eram tecnologias disponíveis no mercado, já vendidas e atreladas a grandes marcas, reconhecidas comercialmente. Então, eu submeti sem esperar que fôssemos indicados. E quando houve a indicação, eu diria que foi uma surpresa, porque mostra o real impacto desse tipo de tecnologia no mercado, já que essa premiação não tem como foco a pesquisa; a ênfase é comercial.

MCTIC: Há informações acerca dos outros cinco candidatos da categoria?
Ana Carolina: São três tecnologias relacionadas a GPS, para ajudar na locomoção, dispositivos de pulso que medem a temperatura corporal, batimentos cardíacos, desempenho dos atletas. Já existem braceletes semelhantes em lojas, mas esses três têm diferenciais de inovação. Outro concorrente é um anel desenvolvido para fazer pagamento em maquininhas e agilizar o processo de compra de ingressos em megaeventos esportivos. Isso foi usado nos últimos Jogos Olímpicos. Então, é um produto de impacto comercial, nem tanto social, eu diria. E a quinta tecnologia é ligada ao rendimento de atletas de futebol, para analisar a velocidade do jogador e medir outras variáveis. Essa proposta venceu a categoria no ano passado e está concorrendo de novo porque trouxe uma inovação. De todos os candidatos, somos o único a entrar com uma vestimenta de fato, uma roupa. Acho que o nosso projeto tem grandes chances, especialmente por sua envergadura social.

MCTIC: Que áreas compõem a natureza multidisciplinar do projeto?
Ana Carolina: Quando o CNPq aprovou o projeto, tive o cuidado de não impor a engenharia às demais áreas relacionadas. Essa é a grande questão, porque eu, como pesquisadora, tinha que estar atenta às outras áreas, que não eram minha expertise, como sociologia, linguística, educação física, fisioterapia, fisiologia e psicologia. O projeto, como é pioneiro, envolve diversos campos do conhecimento. A responsável pela análise dos vídeos das Paralimpíadas, por exemplo, é uma socióloga que trabalhou com essa questão do impacto do uso da corda na relação de desenvolvimento motor entre o atleta e o seu guia. Ela tem em sua equipe dois doutores em educação física, um estatístico e um linguista, para tratar da linguagem tátil. Também convidamos especialistas em políticas públicas, porque diz respeito a uma nova tecnologia, que pode mudar até legislação. Da engenharia, contamos com uma vasta área, entre elétrica, mecatrônica, de controle e automação, da computação, de redes etc. Futuramente, eu diria que chegaremos até a uma parte da medicina, na qual testaríamos esse tipo de dispositivo na performance do atleta em termos cardíacos. Tudo isso ainda deve ser gerado, porque o projeto é rico em termos de pesquisa. Qual é a condição física do atleta com ou sem a tecnologia? Qual é o impacto sociológico disso? Como o atleta se sente psicologicamente? Temos uma equipe que trata da questão psicológica do atleta, de pontos fundamentais para ciência e inovação. Por exemplo, essa relação de afetividade que ele tem com seu guia – isso pode interferir na sua performance, sem ou com o uso da tecnologia? Essa é uma pergunta científica que ninguém fez ainda. São várias áreas. Pode ser que outros profissionais entrem e comecem a se fazer perguntas desse tipo. A inovação tecnológica começa com uma pergunta que não está respondida cientificamente.

MCTIC: Como o projeto envolveu alunos de três universidades amazonenses e instituições do Nordeste, do Sudeste, do Sul e até de Portugal?
Ana Carolina: Começamos a fazer uma rede de contato com alunos, pesquisadores e doutores, que foram aderindo ao projeto. O diretório do Cicari na plataforma do CNPq inclui 40 profissionais. E como Portugal entrou? O Departamento de Engenharia Biomédica da Universidade do Minho se interessou pelas pesquisas. E já estamos fazendo uma parceria de troca de expertise muito bacana. Vários alunos bolsistas hoje já fazem mestrado no ITA, mas ainda têm um vínculo bem forte com o projeto. Eu tenho uma aluna que fez publicações com a gente e hoje está em uma universidade japonesa, com a carta de recomendação do Cicari e tudo mais. Então, foi uma porta de abertura para universitários aqui do Norte, que não têm tanta visibilidade como os colegas do Sul e Sudeste, em termos de geração de inovação tecnológica. Trouxemos grandes pesquisadores para a equipe. A interação foi muito boa. A equipe multidisciplinar está nessa concepção.

Fonte: MCTIC