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ARTIGO CIENTÍFICO - DA CIÊNCIA PARA VOCÊ

Parentesco vegetal influencia no tipo de uso da madeira por povos tradicionais da Caatinga brasileira

publicado: 21/10/2024 09h59, última modificação: 21/10/2024 17h09
O estudo foi conduzido em áreas da região dos Cariris Velhos, na Paraíba
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Autora: Kamila Marques Pedrosa (UEPB)

Co-autores: Maiara Bezerra Ramos (UEPB), Maria de los Ángeles La Torre-Cuadros  (Universidad Científica del Sul, Peru), Sérgio de Faria Lopes (UEPB)

 

As plantas e os seres humanos estão envolvidos em um processo dinâmico, pois os seres humanos desenvolveram formas de utilizá-las com base em seus conhecimentos, práticas e crenças. Apesar de toda a diversidade de plantas que ocorrem na Caatinga (Floresta Tropical Sazonalmente Seca), grupos humanos usam um subconjunto específico de espécies para atender às suas demandas locais, de modo que espécies morfologicamente semelhantes tendem a ser mais utilizadas. Tal semelhança é decorrente dos atributos funcionais semelhantes entre as plantas [características do organismo] devido à herança evolutiva. Portanto, a associação de características de certas espécies utilizadas na seleção foi uma estratégia desenvolvida ao longo do tempo por grupos humanos. O nosso objetivo é entender se as plantas relacionadas (em termos de parentesco evolutivo) são conhecidas para o mesmo propósito por populações locais em uma região da Caatinga.

Partimos da premissa de que espécies vegetais filogeneticamente mais próximas compartilham características morfológicas e são utilizadas de forma mais similar do que espécies distantes na filogenia (representação gráfica que demostra a proximidade filogenético dos organismos). O estudo foi conduzido em cinco áreas da região dos Cariris Velhos, na Paraíba, envolvendo comunidades rurais. Foram entrevistadas 120 pessoas entre 2018 e 2020, com apoio de estudantes de pós-graduação da Universidade Estadual da Paraíba, integrados ao Laboratório de Ecologia Integrativa (Ecotropics). As cinco áreas de estudo foram comunidade Riacho Fundo (7°23'47,6''S, 36°27'04,5"W), localizada no município de São João do Cariri; Caiçara (07°23'8,12''S, 36°23'36,74''W), localizada no município de Cabaceiras; Alto dos Cordeiros (7°30'53,6"S,°59'46,6"W), localizada no município de Barra de Santana; Viveiro (7°25'33,5" S, 36°48'43,0"W), localizado no município de São José dos Cordeiros, e Olho d'água (7°54'56,6"S, 37°17'09,2" W) localizado no município de Monteiro. 

Todos os participantes foram esclarecidos que não haverá benefícios individuais diretos, mas a pesquisa trará benefícios indiretos para a comunidade científica que poderá desenvolver ajustes para fornecer manejo adequado dos recursos vegetais. Identificamos que a maioria das famílias botânicas citadas teve apenas uma ou duas espécies registradas para algum uso, com exceção das famílias botânicas Euphorbiaceae e Fabaceae, com seis e 20 espécies, respectivamente. A madeira foi a principal parte da planta indicada para usos, exceto para a categoria cerca viva, na qual toda a árvore é utilizada. O estudo mostrou que as plantas usadas para cabos de ferramentas (λ = 0,75) e artesanato (λ = 1,01) incluíam forte agrupamento filogenético, ou seja, as espécies usadas para esses fins têm características semelhantes e são evolutivamente próximas. Para outros usos, como lenha (λ = 0,11), itens domésticos, telhado, cercas e portas, o agrupamento foi fraco, infelizmente que as pessoas tendem a usar plantas menos relacionadas entre si para essas funções.

Em áreas de escassez, como a Caatinga, praticamente qualquer planta pode ser aproveitada, especialmente para lenha, que exige maior quantidade de biomassa. Também encontramos um agrupamento filogenético moderado para a redundância de espécies (λ = 0,78), indicando que plantas com funções semelhantes são, em parte, selecionadas com base em sua proximidade evolutiva. As espécies Schinopsis brasiliensis (baraúna) e Astronium urundeuva (aroeira) foram as mais citadas. Isso indica que essas plantas, com características funcionais semelhantes, são escolhidas com mais frequência, mas também sofrem maior pressão de uso devido às suas características. Populações humanas localizadas em ambientes semiáridos coletam madeira de plantas úteis para atividades domésticas e rurais e geralmente procuram plantas que sejam semelhantes em termos morfológicos. Este estudo destacou a importância de controlar a história evolutiva de plantas úteis citadas por populações locais inseridas em uma região de Caatinga.

O componente filogenético foi um recurso importante para descobrir plantas usadas de forma não aleatória para cabos de ferramentas e artesanatos, considerando que as plantas mencionadas apresentam proximidade filogenética. Além disso, encontramos um grau moderado de agrupamento filogenético para redundância de espécies e fraco para densidade de madeira. A proximidade filogenética de plantas úteis e a menor redundância para algumas espécies em nosso estudo podem sugerir maior pressão de uso, dado que poucas espécies cumprem a mesma função. Nossos resultados preenchem uma lacuna sobre como a relação evolutiva de plantas úteis pode servir para entender a seleção de plantas por grupos humanos na Caatinga. Entretanto, recomendamos que estudos futuros busquem entender se há características agrupadas dentro de filogenias que podem orientar o comportamento humano na seleção de plantas.

O estudo foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual da Paraíba e da Universidad Científica del Sur, Peru.

A pesquisa está vinculada à Universidade Federal Rural de Pernambuco e Universidade Estadual da Paraíba, onde está inserido o Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza.

INFORMATIVO:

Qual é o foco do artigo?

O foco do artigo é analisar se as populações de uma região do semiárido paraibano utilizam plantas com proximidade filogenética para atividades como construção rural, doméstica, biocombustíveis e artefatos tecnológicos, investigando padrões evolutivos no uso dessas espécies, afim de inferir sobre as estratégias de utilização das plantas pelas pessoas.


Principais pontos do artigo

As florestas secas, a exemplo da Caatinga, têm enfrentado mudanças importantes na diversidade de espécies vegetais. Nesses ambientes tem-se populações humanas que apreenderam ao longo de gerações utilizar as plantas para atender as atividades diárias do campo. As evidências tem demostrado que a utilização da madeira das plantas é geralmente influenciada pela biomassa/disponibilidade da planta, mas os grupos humanos sabem identificar a melhor espécie a ser utilizado para um determinado fim. A especificidade do uso garante que a seleção de uma planta não ocorra de forma aleatória, pois existem filtros cognitivos que faz com que as pessoas selecionem plantas especificas. Por exemplo, as semelhanças morfológicas entre duas ou mais espécies é um critério de seleção para o uso. No entanto, ainda não sabíamos concretamente como explicar o uso de plantas semelhantes para realização de uma atividade local.

Por que o público deve se interessar pelo artigo?

O público deve se interessar por este artigo porque ele destaca a importância do conhecimento tradicional na seleção de plantas, transmitido ao longo de gerações, revelando critérios profundos e sustentáveis. A Caatinga, por muito tempo negligenciada, abriga uma das maiores sociobiodiversidades do Brasil. Compreender como os povos do semiárido manejam e utilizam essas plantas é fundamental para promover tanto a conservação da natureza quanto a bioprospecção, abrindo portas para novos conhecimentos e práticas sustentáveis.

Conhecimentos sobre o tema

Há mais de dez anos, estudo o conhecimento tradicional dos povos da Caatinga. Embora os estudos etnobotânicos geralmente documentem o uso de plantas pelas comunidades, adoto abordagens interdisciplinares para compreender a complexidade do conhecimento humano. Este artigo resulta da minha tese de doutorado, realizada em colaboração com especialistas da área. A pesquisa parte da hipótese de Moerman (1999), que sugere que os seres humanos selecionam plantas de forma não aleatória, um tema amplamente explorado por cientistas. Essa hipótese ajudou a validar a importância do conhecimento tradicional, muitas vezes subestimado. Nosso estudo foi pioneiro ao empregar ferramentas para analisar a proximidade filogenética das plantas úteis na Caatinga. Os resultados revelam padrões de uso relacionados à seleção de plantas com proximidade evolutiva, o que abre novas perspectivas para a bioprospecção de plantas. Esses achados serão explorados em futuros estudos que tenho desenvolvido, ampliando as possibilidades de conservação e uso sustentável da biodiversidade da região.
Moerman DE, Pemberton RW, Kiefer D, Berlin B. a Comparative Analysis of Five Medicinal Floras. J Elhnobiology. 1999;19(1):49–67.

Resumo do currículo da primeira autora:

Kamila Marques Pedrosa - Doutora em Etnobiologia e Conservação da Natureza pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (2023). Mestre em Desenvolvimento do Meio Ambiente (UFPB- 2018). Graduada em Ciências Biológicas (Licenciatura e Bacharel) (UFPB - 2015), com especialização em Etnobiologia (UEPB-2016). Desenvolveu estágio pós-doutoral pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (IABS; 2023). Atualmente realiza estágio pós-doutorado júnior do CNPQ, vinculada ao Programa de Pós Graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Estadual da Paraíba. Possui experiência na área de Etnobotânica e ecologia. E experiência ministrando disciplinas de Biologia e Ciências (ensino médio e fundamental, rede pública de ensino).