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FEMINICÍDIO SOB INVESTIGAÇÃO

publicado: 04/11/2024 11h59, última modificação: 04/11/2024 12h11
Pesquisa estuda as várias facetas dos crimes ocorridos no Estado
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Autora: Mauriene Silva de Freitas, coordenadora do projeto (Professora Dra. em Linguística/UEPB)

Co-autores: André Akênio Diniz Alexandre; Samara Vieira Cardoso; Paulina  de Lima Pereira (Estudantes do curso de Letras da UEPB, campus IV- Catolé do Rocha,  bolsistas do Programa da Iniciação Científica - PIBIC)

O nome deste projeto/pesquisa é simples, direto e não titubeia: tem como objetivo investigar os crimes de feminicídio ocorridos no Estado da Paraíba sob diversas perspectivas.  É muito comum ao vermos esse tema nos depararmos com abordagens jurídicas/legalistas. A proposta de investigação é mais ampla e flerta muito mais com os aspectos sociológicos do que a frieza das estatísticas criminais, pois todo caso é necessariamente uma mulher morta, uma família desfeita, um trauma familiar e, sobretudo, uma vida humana interrompida.

O projeto nasceu em 2018 com outra abordagem. Com financiamento da Fapesq- Fundação de apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba, o projeto “ Os homens que não amavam as mulheres”: discurso dos acusados em cometer feminicídio na Paraíba, desenvolvido na Universidade Estadual da Paraíba, no campus  IV- Catolé do Rocha, veiculado ao grupo de pesquisa REBRAPE - Realidade Brasileira em Pesquisa e se concentrou apenas nos acusados, em tentar compreender, através dos seus discursos, quais os motivos e alegações para cometimento de tal crime.

Em nova formulação decidimos mudar o enfoque. O projeto foi renomeado para “Feminicídio sob investigação” a partir de 2022 e passamos a fazer o acompanhamento diuturnamente dos casos de feminícidio veiculados nas mídias paraibanas. Nossa pesquisa ampliou seu escopo de atuação e se debruçou  em busca de informações sobre as vítimas, o crime e o acusado, além da cartografia das ocorrências dos casos veiculados nas notícias e sobre as construções intrínsecas da própria notícia - uma espécie de estudo metalinguístico.

Para nossa surpresa, conseguimos coletar os mesmos números de casos de feminicídios ocorridos no Estado e veiculados pelos dados oficiais[1] nos anos de 2022 e 2023, além de conseguir mais informações sobre as especificidades do crime propriamente dito. Com esses dados em mãos,  conseguimos criar um mapa das ocorrências de feminicídio na Paraíba fazendo como recorte as mesorregiões paraibanas - Zona da Mata, Borborema, Agreste e Sertão.

É importante ressaltar que no Anuário da Segurança Pública do Estado da Paraíba de 2022, em seus dados oficiais, ainda não havia sido feito um mapa estadual dos crimes de feminicídio, isso só passa a ocorrer no anuário de 2023, mas mesmo assim, sem fazer o recorte pelas mesorregiões paraibanas. Assim, nossa pesquisa se antecipou na forma de tratar esses dados e publicizá-los para o grande público.

[1] Os dados estão nos Anuários da Defesa Pública e Segurança Social da Paraíba. Disponível em: https://paraiba.pb.gov.br/noticias/anuario-da-seguranca-publica-aponta-reducao-de-homicidios-roubos-e-ataques-a-bancos-na-paraiba-em-2023/copy_of_Anuario_2023_digital_completo.pdf

E por que demarcar as mesorregiões, como nós fizemos desde 2022 em nosso trabalho, é tão importante?

A partir desses levantamentos, os 24 casos ocorridos no ano de 2022, percebemos que o maior número de casos está localizado na Zona da Mata com 9 casos. Seguidas pelo Sertão com 8 casos, Agreste com 5 casos e finalmente Borborema com 2 casos. Em 2023 este resultado sofreu algumas alterações. Dos 34 casos registrados, 11 casos foram registrados no Sertão, a Zona da Mata marcou 9 casos, o Agreste 9 casos e a Borborema 5 casos. A interpretação não está nos números absolutos, mas na proporção de número de casos com a densidade populacional de cada mesorregião. Para calcularmos a taxa de violência por 100.000 habitantes usamos a fórmula consolidada: número de casos registrados por população por região, multiplicado por 100.000 e desta maneira, os dados se revelam.

Com base nesse cálculo, no ano de 2022, a região com maior número de casos proporcionalmente foi o Sertão, seguido pela Borborema, Zona da Mata e por fim Agreste. Em 2023 esse ranking se altera pois em primeiro lugar aparece a mesorregião da Borborema, seguida pelo Sertão, Agreste e Zona da Mata. Assim, desses dados podemos fazer algumas aferições: o Sertão e a Borborema se revezam entre as regiões mais violentas para as mulheres, ficando na ponta de observação e como principal foco de atuação das ações governamentais para o combate à violência de gênero. Embora Agreste e Zona da Mata tenham a maior densidade populacional do Estado e apresentem altos índices em números absolutos quanto ao registro de morte por feminicídio no Estado, não são, proporcionalmente, a mesorregião mais violenta, embora seu índice seja alarmante. 

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DADOS 2022

 

Zona da Mata: 9      9/1351735  x 100.000=0,665

Sertão: 8                   8/871067 x 100.000= 0,918

Agreste:5                  5/1220208 x 100.000= 0,409

Borborema:2            2/299596 x 100.000= 0,667

 

DADOS 2023

 

Zona da Mata: 9     9/1351735 x 100.000 = 0,665

Sertão: 11                11/ 871067x 100.000= 1,262

Agreste: 9               9/ 1220208 x 100.000=0,737

Borborema: 5         5/ 299596 x 100.000= 1,668

 

 

Logo, esse dado nos diz da emergência de interiorizar as estruturas - Rede REAMCAV[2]-  e ações governamentais de combate à violência contra a mulher. É urgente elaborar ações educacionais para efetuar uma mudança social, ou seja, para a transmutação da práticas sociais, com urgente foco de atuação no Sertão e no Borborema, para que essas localidades transformem a sua maneira de pensar, sentir  e agir que resultam no cometimento do crime de feminicídio.

Também perfilamos, no que foi possível extrair do nosso corpus - as notícias- , as características do crime. Por isso confeccionamos uma ficha própria com informações que julgamos ser importante para a compreensão dos casos. Nesta ficha reunimos os mais diversos aspectos sobre a vítima como: idade, gênero, gestante, filhos, pcd, cor, religião, escolaridade, com quem mora, endereço, zona, situação conjugal, se separado do agressor, há quanto tempo, tipo de relação com o agressor, histórico de violência doméstica mencionado.   Sobre o crime buscamos informações sobre: onde ocorreu, onde o corpo foi encontrado, diferença de idade entre a vítima e o acusado, qual instrumento utilizado para causar morte, dia da semana, quantas vítimas, tipo e local de ferimentos, quem acionou as autoridades. Sobre o acusado buscamos informações sobre: nome, idade, possui antecedentes criminais, possui medida protetiva, já havia ameaçado a vítima antes, suicídio após o crime, fuga após o crime. E finalmente sobre a notícia buscamos informações sobre: onde foi noticiado, fonte de consulta inicial, link, transcrição da manchete, o assassino é sujeito ativo ou passivo, a vítima é sujeito ativo ou passivo, a foto do assassino está visível, a foto da vítima está visível, tipo de feminicídio (sexual ou íntimo).   

Vejamos, com amostra, o ano de 2022. No que diz respeito ao perfilamento das informações sobre as vítimas temos o seguinte diagnóstico:  majoritariamente as notícias trazem informações sobre o nome, idade e foto da vítima. O percentual de presença de filhos é muito aproximado das que não são mães e quase metade das vítimas moravam com acusado. Questões de identificação racial, escolaridade, perfil econômico e religiosidade não foram abordadas nas notícias e por isso não foram encontradas nenhuma ocorrência.

No que diz respeito ao crime, quase de forma equiparada, os crime ocorreram no espaço público e no espaço privado, ou seja, as violências domésticas extrapolaram o espaço domiciliar e ocorrem em via pública, mesmo sendo feminicídios íntimos, isto é, um assassinato de mulher em que a vítima já teve algum tipo de relação afetiva e/ou de convivência com o acusado e que pressupõem, em algum momento, uma dinâmica familiar conjunta. Isso nos mostra transbordamento do espaço de violência, da casa para rua.

A diferença de idade entre vítima e acusado também é um fator que aparece de forma robusta. Quase 50% dos casais apresentam, pelo menos, uma diferença etária de mais de 5 anos, podendo atingir a diferença de até 25 anos, quando apenas menos de 10% apresentem a mesma idade.  Sobre o instrumento de morte, 42% das ocorrências foram feitas com lâminas em geral, podendo ser facas, fações ou objetos perfurantes. Na sequência diagnosticamos que 38% dos casos de morte de mulheres ocorrem com armas de fogo e os demais instrumentos podem ser os mais esdrúxulos possíveis : carros, cordas e mãos.

O dia da semana que mais ocorreu este crime no ano de 2022 foi o sábado, correspondendo quase a 30% dos casos. Na sequência, vem a quinta feira com quase 20% das ocorrência. Um fator importante a ser mencionado é que todos os crimes ocorridos na segunda feira, ocorreram nas primeiras horas, ou seja, o crime acontece como consequência das atividades de lazer iniciadas no domingo. Portanto, se juntarmos sábado, domingo e segunda feira, teremos um pouco mais de 50% dos casos e isso nos mostra que o momento longe da rotina laboral é mais propício para o cometimento do crime de feminicídio.

No que diz respeito ao acusado, constatamos que em 86% dos casos seu nome e idade aparecem na notícia, embora seja muito difícil localizar sua imagem em foto na matéria veiculada. Em 41% dos casos elas não são encontradas em nenhum link, sendo apenas 25% dos casos que encontramos a imagem no primeiro link de pesquisa e os demais são necessárias pesquisas mais aprofundadas para achar sua imagem. Em 63% das notícias não existe nenhuma informação sobre os antecedentes criminais do suspeito e só encontramos a presença desta informação em 12% das notícias, contrastando com os 29% que atestavam que o acusado não possuía antecedentes criminais.

Outra informação que é omitida nas notícias é sobre ameaças à vítima. Em 58% dos casos essa informação não constam nas notícias, e os demais percentuais dividem, de forma igualitária, a presença e ausência de ameaças. Com isso, não podemos afirmar categoricamente que as ameaças precedem, obrigatoriamente, os crimes de feminicídios. O mesmo se repete no que diz respeito a presença ou não de medidas protetivas: em 62% das notícias não constam se elas estavam em vigência e apenas 4% constam a presença deste recurso, contrastando com 33% que afirmam que não haviam medidas protetivas em curso. Isso também não nos dá possibilidade interpretativa para aferir a relação violação de medida protetiva e crime.

No entanto, podemos afirmar categoricamente que na maioria dos casos, quase 67%, os acusados fogem após o crime e em nenhum caso, o acusado se entregou as autoridades após o cometimento do crime. Isso só reforça a ideia de crime hediondo, aquele que causa repulsa e por causa disso é um crime inafiançável, se opondo a tese utilizada pela defesa dos acusados, em grande número de casos, de crime passional - aquele cometido pela cegueira temporária de razão, ou seja, por uma violenta emoção ou privação de racional. É senso comum que o crime de feminicídio é conhecido como “crônica de uma tragédia anunciada” pois a vítima já passou por algumas violências, quiçá todas, previstas na Lei Maria da Penha - moral, psicológica, sexual, patrimonial e física. Assim, com os dados estaduais e as elaborações teóricas, afirmamos que não existe a viabilidade da tese de crime passional no cometimento de crime de feminicídio.

Também é preciso informar que em 25% dos casos, o acusado tenta ou comete suicídio após o crime do crime. É esse percentual que deve ser observado com muita atenção pois são essas partes que podem promover verdadeiras tragédias generalizadas. Tomados pela certeza do sentimento de propriedade das vidas femininas e tudo que advier dela, característica da sociedade patriarcal, o acusado crer que o direito de vida e morte se concentra na mão dele, do pater, pois ele é o chefe de família e tem o direito de não permitir a existência de nenhuma vida no núcleo familiar do qual ele não faz mais parte, ou mesmo que sua presença esteja supostamente ameaçada. São esses casos que resultam na dizimação de famílias inteiras: esposas e filhos, familiares e amigos.

 No que se refere à notícia propriamente dita, muitas são as observações. Percebemos que as construções sintáticas com o nome da vítima não aparece nessas manchetes, tão pouco o nome do suspeito, que como pode ser observado na imagem retirada do site, a ação violenta e participação do acusado é apenas subentendida, pois ele está oculto no texto. Na Manchete “Mulher é vítima de feminicídio ao sair do trabalho, em João Pessoa” a vítima sofre a ação, ou seja, é agente da passiva pois o causador da ação está oculto, o acusado. Esse padrão se repete nas inúmeras matérias sobre o assunto, assim como a falta de informações sobre os acusados e da continuidade do acompanhamento jornalístico no desenrolar dos casos.

O aspecto positivo é que conseguimos encontrar em todas as ocorrências de casos de feminicídio em 2022 e 2023 registradas em notícia, ou seja, a mídia paraibana, mesmo sem normatização na maneira de abordar o tema, cobriu, nesse interstício, todos os casos ocorridos no Estado. Isso nos mostra que o temática é de relevância social e que, de alguma maneira, existe um aceno da sociedade paraibana em interesse sobre este crime. Compreendemos que não é da alçada do jornalismo fazer qualquer tipo de ação pedagógica no combate contra esse crime, mas não se pode negar a importância de trazer à baila a questão do feminicídio, seja nos programas matinais de rádio, nos programas televisivos do horário do almoço, ou ainda em matérias escritas em sites e blogs, publicadas em redes sociais. É imprescindível fomentar o debate e abrir um canal de conscientização da população através da veiculação, de forma responsável e respeitosa,  sobre o crime.

[2]  Rede estadual vinculada à Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (SEMDH) responsável por articular órgãos, serviços e entidades no enfrentamento e atendimento às mulheres em situação de violência. 

Resumo do currículo da Coordenadora da pesquisa

 

Mauriene Freitas 

Profa. Associada da Universidade Estadual da Paraíba. Dra. e Msc em Línguística, especialista em Ensino de Língua Portuguesa, graduada em Letras. Componente do REBRAPE- Realidade Brasileira em Pesquisa. Já foi presidenta da Associação dos Docentes da Universidade Estadual da Paraíba e dirigiu o documentário " Mátria Silva" que narra a reabertura da Cozinha Solidária do Jeremias, em plena pandemia, com a cooperação do movimento sindical, movimento social e comunidade. Sempre envolvida em movimentos femininos, participou da fundação do Baque Mulher em Recife, participou do Baque Mulher João Pessoa e Campina Grande. Fundou a Frente de Mulheres da UEPB e compôs a Frente de Mulheres de Campina Grande.

 ( Endereço para acessar este CV: 

https://lattes.cnpq.br/4510312522239364