Notícias

Cachaça paraibana potencializa sua qualidade

publicado: 28/12/2020 11h36, última modificação: 30/12/2020 11h38
Pesquisas procuram isolar a levedura que torna o produto produzido na Paraíba diferente do resto do país
Pesquisa cachaça - 04 - divulgação UEPB.jpeg

Por Renato Félix

 

Em outros tempos, “cachaceiro” não tinha nem de perto uma conotação positiva. Isto está mudando, graças a um trabalho muito sério de pesquisa e marketing dedicado a estabelecer e divulgar a qualidade do produto. Em festas, como as de fim de ano, esse produto genuinamente brasileiro e com forte presença produtiva na Paraíba, vai galgando espaço e disputando atenção com outras bebidas outrora vistas como mais nobres, como o uísque. A Universidade Estadual da Paraíba, no campus de Lagoa Seca, vem trabalhando num verdadeiro processo de investigação: quer descobrir que leveduras específicas atuam no processo de fermentação da cachaça paraibana, que a ajudam a se diferenciar dos produtos do resto do país.

A pesquisa vem sendo feita no engenho-escola localizado no Centro de Ciências Agrárias e Ambientais, do campus II. O engenho-escola possui um alambique de cobre e também um laboratório para pesquisas voltadas à cachaça. “Nesse laboratório realizamos um projeto no qual fazemos uma pesquisa voltada para o isolamento de leveduras – microorganismos que atuam no processo de fermentação para transformar o gosto da cana de açúcar em vinho.  Esse vinho é destilado e transformado em cachaça”, explica o professor José Felix de Brito Neto, diretor do Centro de Ciências Agrárias e Ambientais e coordenador do programa de seleção de leveduras fermentadoras para cachaça e aguardente de cana da UEPB.

“Nós acreditamos que existem cepas de leveduras selvagens aqui em nosso brejo paraibano”, prossegue. “Essas pesquisas estão sendo realizadas em parceria com alguns engenhos para que a gente possa isolar essa levedura, uma levedura intrínseca da região que nós possamos utilizar no processo de fermentação. Isso tem uma série de benefícios. O maior seria a indicação geográfica da nossa cachaça”.

Essa pesquisa sobre a levedura está na mira da Fundação de Apoio à Pesquisa da Paraíba (FapesqPB), que já programa para o início de 2021 um edital sobre a cachaça. “A gente quer lançar um edital que enfoque três pontos”, enumera o professor Roberto Germano, presidente da fundação. “O levantamento das leveduras do estado da Paraíba, tentando fazer um diagnóstico; outro voltado para a análise sensorial e uma tentativa de ranqueamento das cachaças da Paraíba; e, por último, a questão de padronização físico-química, o atendimento da padronização exigida pelo Ministério da Agricultura, que a gente tivesse esse diagnóstico e essa caracterização das cachaças mais conhecidas da Paraíba”.

Esta semana, uma dissertação de mestrado foi defendida no campus já partindo dessa pesquisa e resultado na fabricação de uma cachaça. Um ponto de um projeto maior. “A ideia é montar um banco de leveduras no laboratório para atender a demanda dos engenhos e também isolar essa que a gente acredita que existe aqui no brejo”, diz o professor Felix. “Porque a cachaça da Paraíba é diferente da cachaça produzida no restante do país. Quem é conhecedor da cachaça sabe que existe uma diferença. O cheirinho do bagaço, o cheirinho do engenho...”.

 

Mudança de status

A cachaça foi associada por muitos anos aos piores botequins, mas agora é oferecida em restaurantes chiques em cartas, como as cartas de vinho, e conta com especialistas que poem dizer que cachaça vai melhor com que tipo de carne, por exemplo. Se o vinho tem sommeliers, a cachaça tem os “cachaciers”.

“A cachaça durante muitos anos foi considerada uma bebida de baixa qualidade, atendendo apenas às frações com menor poder aquisitivo da sociedade. Sempre ligada àquela pessoa que bebia muito, que enchia a cara: o famoso bebum”, diz o professor Felix. Mas graças aos trabalhos de pesquisa desenvolvidos pelas universidades e pelos institutos de pesquisa pelo Brasil afora, a cachaça tem ocupado seu lugar de destaque. “Muitas pesquisas com relação aos componentes químicos presentes foram realizadas, atreladas à modernização dos engenhos, modernos alambiques que proporcionaram a fabricação de um produto mais elaborado”.

Outra questão importante que tem colaborado nessa mudança de status está ligada à questão do envelhecimento da bebida. “Diferentes madeiras do Brasil são usadas para envelhecer cachaça”, conta o professor. “E isso proporciona uma melhor qualidade à bebida. São madeiras como bálsamo, jequitibá, freijó, jaqueira, umburana, carvalho europeu, carvalho americano...”.

Assim, há cachaças envelhecidas por 8, 10, 12 anos em barris de carvalho ou de jequitibá, agregando sabor e valor. “Hoje você tem garrafas de cachaça que são mais caras que garrafas de uísque”, diz Felix.

 

Salão Paraibano da Cachaça foi virtual

 

O Salão Paraibano da Cachaça foi realizado de 15 a 17 de dezembro, de forma, claro, virtual. A pandemia não intimidou os organizadores que sentiram a necessidade de um evento para levar informações a produtores, estudiosos e apaixonados por essa bebida. “Pensamos em um modelo digital que pudesse atender a essa expectativa. Houve uma exposição em 3D, com um Parque do Povo digital com estandes das empresas do estado, e também algumas de Minas e de São Paulo”, diz Felix, que também foi organizador do salão.

Palestras foram transmitidas no YouTube, em canais do salão e da UEPB. Houve a participação de 11 palestrantes, como Aline Bortoletto, Maria das Graças Cardoso, André Alcarde – nomes importantes do estudo da cachaça no país. “Foram três dias de muita riqueza técnica, científica e cultural sobre a cachaça paraibana”, conta.

Já está programado para o ano que vem a segunda edição do Salão Nacional da Cachaça, em setembro de 2021. “A expectativa são as melhores possíveis”, aposta o professor. “A Paraíba precisa colocar isso de uma vez por todas no calendário de eventos. O setor interessado na cachaça do Brasil todo estará com os olhos voltados para a paraíba: garrafas, garrafas de porcelana, lacres, tampas, equipamentos, alambiques... Não nos enganemos: a principais empresas do setor no Brasil têm um pé na Paraíba visando a nossa potencialidade como produtora de cachaça a nível nacional”. O Governo do Estado, através da Fapesq, também vai apoiar a realização do evento, com apoio do Sebrae.

 

Importância econômica

 

Em 2019, 30 milhões de litros de cachaça foram produzidos na Paraíba. Alguns engenhos foram responsáveis por uma parcela de 3,5 milhões de litros nesse montante. É um número que mostra como esse mercado tem adquirido cada vez mais importância no estado.

“O setor produtivo da cachaça é extremamente importante para a economia paraibana. Os dois maiores pagadores de ICMS do estado são do setor agroindustrial de cachaça”, conta o professor. “Gera muito emprego e renda e muita divisa econômica para o estado. Desde o cultivo da cana, corte, transporte, transformação em cachaça, o bagaço que é usado para ração animal e em pisos para a criação de aves... É uma cadeia produtiva muito rica. A Paraíba é apaixonante: tem cachaça sendo produzida no litoral, na zona da mata, no brejo e no alto sertão. Sapé ganhou recentemente um engenho de produção de cachaça”.

E há um aspecto que ainda precisa ser muito desenvolvido. “Outra parte dentro dessa cadeia que não foi explorado nem 5 % do seu potencial é a questão do turismo da cachaça – sobretudo no brejo. É preciso trabalhar muito isso para fortalecer o turismo cachaceiro na região”.

“A Paraíba, depois de Mina Gerais, é o estado que possui o maior número de marcas de cachaças de alambique, cachaças artesanais, tendo um protagonismo muito forte nacionalmente”, concorda Roberto Germano, presidente da Fapesq. “Na verdade, a sociedade veio a reconhecê-la não como uma bebida de pínguço, mas, sim, como uma bebida chique dos melhores restaurantes. É esse momento que precisamos aproveitar para melhorar a qualidade do nosso produto, divulgar a importância desse produto como harmonização com a cozinha paraibana. Essa questão com a harmonia gastronômica é de extrema importância”.

“Não só a população nacional, mas os europeus são loucos pela cachaça. Isso se deve em grande parte à caipirinha”, lembra Felix. “A percepção mudou muito, a cachaça encontrou seu lugar de destaque. Mas ainda há muito o que se fazer. Trabalhar o aspecto sensorial atrelado à qualidade química da bebida é fundamental para solidificar a cachaça no gosto do brasileiro”.